A educação atual exige dos pais e educadores uma postura muito mais
flexível do grupo do que no passado. Nem rígida nem libertária. Só assim
é possível formar indivíduos com senso crítico e capacidade de decisão.
Por que tanta preocupação, ultimamente, com relação à liberdade e seus
limites na educação da criança?
Por que se trata de um problema atual, que vem se colocando de
forma mais intensa, digamos, de uns 30 anos para cá. Até então, educar era
tarefa mais fácil do que agora: os valores a serem transmitidos e as técnicas de
educação eram mais estáveis e todas bem conhecidas. Os pais educavam como
haviam sido educados, e não se perguntavam se estes valores e técnicasestavam realmente corretos. Eram assim e assunto encerrado. Sempre havia
sido assim, ora essa... Se houvesse dúvidas sobre uma questão qualquer, era
simples caso de esquecimento, e, portanto, bastava perguntar a alguém mais
velho. A vantagem desse tipo de educação consistia em dar uma segurança
muito grande ao educador. Não havia motivos para titubeios.
As verdades tinham mais força. Há alguns anos, quando os jovens
começaram a questionar os mais velhos, a cobrar “o que foi que vocês fizeram
com a gente?”, eles “caíram das nuvens”: “Como, o que fizemos? Tentamos
não errar, fazer tudo certo, fomos educados assim e deu certo... por que
então...”
Por que essa mudança relativamente brusca na educação?
Depois da Segunda Guerra, houve uma transformação muito intensa
no mundo, e uma conseqüente quebra de valores. Os valores antigos já não
serviam.. A educação anterior a esse período era eminentemente autoritária.
As pessoas, que ela formava, tendiam a ser mais “amarradas”; não estavam
preocupadas em serem mais livres, mais espontâneas, em encontrar e
desenvolver suas potencialidades (isto se reflete até na postura física e de
vestuários, muito mais “presa”, mais formal do que a do jovem moderno). Era
preciso primeiro saber ser obediente para depois saber mandar. Dar e receber
ordens, e não questioná-las. Mas, de repente, as soluções antigas não serviam
mais para um mundo muito transformado. Não bastava obedecer. Foi preciso
encontrar soluções novas, pensar as coisas, questioná-las.
E as pessoas se viram sem instrumentos, despreparadas para um
mundo assim, muito mais complexo e onde os problemas não estão
equacionados. A cada momento, a pessoa passou a ser chamada a se reavaliar,
a decidir. Tinha aprendido a obedecer e a mandar, mas agora a vida lhe pedia
para optar. Hoje, uma adolescente de apenas 15 anos muito freqüentemente é
chamada a escolher diante de situações como virgindade e amor livre. Há 20
anos isso raramente ocorria. A virgindade feminina era realmente a única
possibilidade correta e inquestionável fora do casamento.
No entanto, a descoberta da liberdade na educação levou ao exagero
oposto. Não se devia mais dizer não às crianças, não se podia pôr limites. O
autoritarismo dos pais deu lugar a uma espécie de autoritarismo das crianças.
Mas entre uma educação rígida e outra de completa liberdade é preferível a
segunda?
A proposta é de educação democrática e não de autoritarismo
infantil. O perigo da educação antiga era produzir pessoas “encolhidas”,
“cabisbaixas”, e o perigo da educação atual é produzir indivíduos de “nariz
pro ar”. O indivíduo “encolhido e cabisbaixo” não sabe defender seu espaço
pessoal, deixa-se invadir, desrespeitar. O indivíduo “nariz pro ar” não enxerga
o outro à sua frente, não percebe suas necessidades, não toma conhecimento3
delas. O “encolhido” não se permite sequer um espaço próprio; o
“nariz pro ar” toma o mundo inteiro para si, invade o outro, desrespeita-o.
Muitas vezes, “liberdade completa” tem sido erradamente entendida como um
reforçar desta postura “nariz pro ar” na vida.
As duas posturas acarretam problemas. Uma mãe que dá “tudo” aos
filhos – não tem um canto que seja apenas seu na casa, não tem um tempo
para suas coisas, para sua vida profissional, pessoal etc – certamente cobrará
toda essa “abnegação”. Claro, se a pessoa “engole sapo” o dia todo, vive com
indigestão, existe mágoa e raiva não elaboradas, talvez mesmo, inconscientes.
Acho que qualquer filho ficaria melhor se recebesse menos, mas de uma mãe
mais feliz, mais realizada. Afinal, sentir-se culpado pela vida infeliz da mãe é
um peso para qualquer um.
Por outro lado, gente de “nariz pro ar” nem sequer vê o outro, e
evidentemente não poderá nunca se relacionar bem com qualquer pessoa. A
pergunta anterior (entre uma educação rígida e outra de completa liberdade é
preferível a segunda?), portanto, está mal posta. A opção não está entre uma
educação rígida e uma educação libertária. Não se trata de prender a criança
entre quatro paredes, mas também não é o caso de deixá-la solta no espaço. É
preciso pelo menos colocar alguns parâmetros, dar alguma orientação e então
deixá-la construir o resto, exercitando-se na liberdade. Se o adulto não colocar
limite algum (nunca dizer não, por exemplo) pode provocar uma situação de
muita ansiedade para a criança. Nesse caso, o adulto não está assumindo seus
papéis, e a própria criança se vê obrigada a colocar-se os limites. Se para o
adulto já é complicado decidir o que é certo ou errado, bom ou mau, para si
próprio, imagine então ter que tomar tais decisões, por exemplo, aos dois anos
de idade. A criança teria que amadurecer antes do tempo.
Não é o caso de ficar o tempo todo martelando regras na cabeça, ou
vigiá-la constantemente, mas também não é para deixá-la sozinha, sem
interessar-se pelo que lhe acontece. Não é preciso sentar-se todos os dias com
a criança para fazer lição de casa (neste caso, ela não teria nem oportunidade
de aprender a ser responsável; os erros e fracassos também são muito
importantes). Mas é bom, de vez em quando, perguntar-lhe se há qualquer
problema; verificar se as lições de casa estão sendo feitas, para que perceba
que estudar é um valor importante e que seus pais estão interessados, e
acompanham sua vida escolar. Não é preciso estar todos os dias à porta da4
escola, para perguntar à professora como vai indo o filho. Mas, certamente, é
preciso ter algum contato com a escola para estar informado das dificuldades,
fracassos e sucessos da criança.
Tomando como exemplo uma criança que começa a andar: se o
adulto não agüenta vê-la desequilibrar-se e cair, e a ampara o tempo todo,
nega-lhe a oportunidade única de experimentar seu desequilíbrio –
indispensável para que construa seu equilíbrio –, de enfrentar o próprio medo
na aventura de estar de pé sozinha. Mas é claro que o adulto não pode
simplesmente soltá-la: é ele quem tem que cuidar de que a criança não se
exponha a situações realmente perigosas, com as quais não tem condições de
lidar. A atitude do adulto neste tipo de trabalho educacional é comparável ao
trabalho da parteira: trata-se de deixar a criança nascer, respeitando o ritmo
natural do parto. Mas é preciso também estar sempre muito atento para ter
condições de discernir os momentos em que se torna necessário uma
intervenção – respeitando o ritmo da criança, dando-lhe oportunidade de ser
co-autora de seu nascimento. É bom ressaltar que isto nada tem a ver com
desinteresse e ausência; ao contrário, é preciso estar sempre atento, sempre
bem informado, preparado para intervir adequadamente, quando necessário.
Como saber exatamente quando e em que medida são benéficas essas
intervenções?
Entre os animais, isso é simples: estão biologicamente preparados
para reconhecer o momento certo e o quanto de liberdade se precisa das aos
filhotes. Konrad Lorenz, por exemplo, fala de como, chegado o momento dos
filhotes dos pássaros voarem, as mães destroem o ninho caso se recusem a
sair. E na queda, os passarinhos voam. Instintivamente, as mães reconhecem o
momento da prontidão para voar. Caso o filho não tente o vôo naquele
momento da vida, é muito provável que jamais consiga voar. Mas com gente é
diferente; com gente, encontra-se de tudo: criança de dois anos tendo que se
cuidar sozinha e mães com filhos de 40 anos ainda se perguntando se está na
hora de soltar o rapaz. Isso porque, o que falta ao ser humano em instinto,
precisa ser compensado com recursos – recursos próprios do homem.5
Que recursos são esses?
Por exemplo, dialogar. Diálogo é uma conversa em que d u a s
pessoas conseguem dizer o que pensam e o que sentem. Num diálogo, as
pessoas estão se expressando e também ouvindo o que o outro expressa. Quem
entra numa conversa só para falar ou só para ouvir não está dialogando.
Outro recurso é observar. Embora muito importante, a linguagem
verbal não é a única forma de expressão humana. Observar significa estar
atento para todas as formas de comunicação. Se alguém afirma que é feliz,
mas sua expressão facial, sua postura, seus gestos, seu comportamento o
negam, está acontecendo algo errado.
Importante também é informar-se. Devido à complexidade da
sociedade atual, acho difícil conseguir educar bem sem um mínimo de
preparação. Se os pais sabem que a birra dos dois anos de idade é um
fenômeno freqüente do desenvolvimento e conseguem entender seu
significado, sentem-se mais tranqüilos e fica mais fácil intervir. Se, pelo
contrário, não dão o peso devido às birras, deixam que o problema se
avolume, ou interpretam simplesmente como “mau gênio” da criança, a
situação pode até vir a ser o início de um problema de relacionamento entre
eles e a criança.
Outro recurso é a informação, que permita aos pais de adolescentes
se situarem corretamente ante o conflito que vivem com os filhos. Não se trata
apenas de rotular a situação como “conflito de gerações”, mas sim de obter
uma série de dados que lhes permitam pôr os pés no chão, para entender a si
próprios e aos filhos dentro da situação.
Atualmente, uma boa literatura fornece essa espécie de informação a
pais e educadores. As próprias escolas também já incluem quase normalmente
em suas programações esse tipo de serviço com conferências, debates,
reuniões de pais e mestres etc.
O ideal seria que pais e filhos resolvessem a questão dos limites
praticamente em pé de igualdade?
Não exatamente. Tem que existir liderança. Só que, nos dias de
hoje, em que a sociedade moderna pede indivíduos com capacidade de
escolha, de decisão, com sentido crítico, é preferível uma liderança6
democrática. O que muda, fundamentalmente, nesse tipo de liderança, é a
postura do educador. Ele não é mais o dono da verdade, autoridade inflexível
e imutável que ninguém ousa contestar, como antigamente se pensava. É
apenas um ser humano, e como tal, pode se enganar – atitude que nada tem a
ver com displicência, irresponsabilidade ou incompetência. Reconhecer a
possibilidade de erro leva a pessoa a ser menos onipotente, mais cuidadosa,
aumentando a probabilidade de acerto.
O líder que sabe repartir autoridade, repartirá necessariamente
responsabilidade. Como todos participaram da decisão estão em condições de
assumir, cada um, sua parcela de responsabilidade.Todos poderão aprender
com os sucessos e os erros, crescendo juntos. Esta é a postura típica do líder
democrático: aceita que ainda possa crescer, educa-se junto com o educando.
Voltando à pergunta, a colocação de que pais e filhos poderiam
resolver a questão dos limites em pé de igualdade, deixa a impressão de que a
liderança desapareceria. Educação democrática não é ausência de liderança.
Nega-se autoritarismo prepotente de antigamente mas não autoridade em si.
Muda apenas a postura do líder. Ele não se coloca como o único capaz de
pensar e decidir. Reconhece os demais como seres pensantes e responsáveis.
Sua função, no entanto, é imprescindível.
Se apenas a vontade do jovem entra no conteúdo das decisões
familiares, ocorre uma inversão de valores: passa-se da prepotência de
antigamente a uma situação de ausência, moleza e permissividade.
Em suma, estabelecer limites é fundamentalmente função dos pais.
Mas, na medida em que a criança for se desenvolvendo e criando ela própria
condições de assumir responsabilidades, o importante é que os pais lhe
confiem parcelas cada vez maiores dessas responsabilidades.
Texto publicado na revista
Psicologia Atual.
" Maria de Melo é psicóloga formada pela USP e psicoterapeuta pós-reichiana, com cerca
de trinta anos de experiência em clínica individual e grupo.
Ps: A configuração do corpo do texto não pode ser modificada devido ao tipo de arquivo, por este motivo, a disposição do texto está diferente do comum.
Muita Paz!
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