domingo, 28 de agosto de 2011

As vantagens e o limite da Liberdade Infantil!

Entrevista de Maria de Melo Azevedo a Graciela Karman


A educação atual exige dos pais e educadores uma postura muito mais
flexível do grupo do que no passado. Nem rígida nem libertária. Só assim
é possível formar indivíduos com senso crítico e capacidade de decisão.

Por  que tanta  preocupação,  ultimamente,  com  relação  à liberdade  e  seus
limites na educação da criança?
Por  que  se trata  de  um  problema  atual,  que  vem  se  colocando  de
forma mais intensa, digamos, de uns 30 anos para cá. Até então, educar era
tarefa mais fácil do que agora: os valores a serem transmitidos e as técnicas de
educação eram mais estáveis e todas bem conhecidas. Os pais educavam como
haviam  sido  educados,  e  não  se  perguntavam  se  estes  valores  e  técnicas
estavam  realmente corretos. Eram assim e assunto encerrado. Sempre  havia
sido assim, ora essa... Se houvesse dúvidas sobre uma questão qualquer, era
simples caso de esquecimento, e, portanto, bastava perguntar a alguém mais
velho. A  vantagem  desse tipo  de educação consistia em  dar  uma  segurança
muito grande ao educador. Não havia motivos para titubeios.
As verdades tinham mais  força. Há alguns anos, quando os jovens
começaram a questionar os mais velhos, a cobrar “o que foi que vocês fizeram
com a gente?”, eles “caíram das nuvens”: “Como, o que fizemos? Tentamos
não  errar,  fazer  tudo  certo,  fomos  educados  assim  e  deu  certo...  por  que
então...”


Por que essa mudança relativamente brusca na educação?
Depois da Segunda Guerra, houve uma transformação muito intensa
no mundo, e  uma conseqüente  quebra  de  valores. Os  valores antigos já  não
serviam.. A educação anterior a esse período era eminentemente autoritária.
As  pessoas,  que ela  formava, tendiam a  ser mais “amarradas”;  não estavam
preocupadas  em  serem  mais  livres,  mais  espontâneas,  em  encontrar  e
desenvolver  suas  potencialidades  (isto  se  reflete  até  na  postura  física  e  de
vestuários, muito mais “presa”, mais formal do que a do jovem moderno). Era
preciso primeiro saber ser obediente para depois saber mandar. Dar e receber
ordens, e não questioná-las. Mas, de repente, as soluções antigas não serviam
mais para um mundo muito transformado. Não bastava obedecer. Foi preciso
encontrar soluções novas, pensar as coisas, questioná-las.
E  as  pessoas  se  viram  sem  instrumentos,  despreparadas  para  um
mundo  assim,  muito  mais  complexo  e  onde  os  problemas  não  estão
equacionados. A cada momento, a pessoa passou a ser chamada a se reavaliar,
a decidir. Tinha aprendido a obedecer e a mandar, mas agora a vida lhe pedia
para optar. Hoje, uma adolescente de apenas 15 anos muito freqüentemente é
chamada a escolher diante de situações como virgindade e amor livre. Há 20
anos  isso  raramente  ocorria.  A  virgindade  feminina  era  realmente  a  única
possibilidade correta e inquestionável fora do casamento.
No entanto, a descoberta da liberdade na educação levou ao exagero
oposto. Não se devia mais dizer não às crianças, não se podia pôr limites. O
autoritarismo dos pais deu lugar a uma espécie de autoritarismo das crianças.


Mas entre uma educação rígida e outra de completa liberdade é preferível a
segunda?
A  proposta  é  de  educação  democrática  e  não  de  autoritarismo
infantil.  O  perigo  da  educação  antiga  era  produzir  pessoas  “encolhidas”,
“cabisbaixas”, e  o  perigo  da educação atual é  produzir indivíduos  de “nariz
pro ar”. O indivíduo “encolhido e cabisbaixo” não sabe defender seu espaço
pessoal, deixa-se invadir, desrespeitar. O indivíduo “nariz pro ar” não enxerga
o outro à sua frente, não percebe suas necessidades, não toma conhecimento3
delas. O  “encolhido”  não  se  permite  sequer  um  espaço  próprio;  o
“nariz  pro  ar” toma  o mundo inteiro  para  si, invade  o  outro,  desrespeita-o.
Muitas vezes, “liberdade completa” tem sido erradamente entendida como um
reforçar desta postura “nariz pro ar” na vida.
As duas posturas acarretam problemas. Uma mãe que dá “tudo” aos
filhos  –  não tem  um canto  que  seja apenas  seu  na casa,  não tem  um tempo
para suas coisas, para sua vida profissional, pessoal etc – certamente cobrará
toda essa “abnegação”. Claro, se a pessoa “engole sapo” o dia todo, vive com
indigestão, existe mágoa e raiva não elaboradas, talvez mesmo, inconscientes.
Acho que qualquer filho ficaria melhor se recebesse menos, mas de uma mãe
mais feliz, mais realizada. Afinal, sentir-se culpado pela vida infeliz da mãe é
um peso para qualquer um.
Por  outro lado,  gente  de  “nariz  pro  ar”  nem  sequer  vê  o  outro,  e
evidentemente não poderá nunca se  relacionar bem com qualquer pessoa. A
pergunta anterior (entre uma educação rígida e outra de completa liberdade é
preferível a segunda?), portanto, está mal posta. A opção não está entre uma
educação rígida e uma educação libertária. Não se trata de prender a criança
entre quatro paredes, mas também não é o caso de deixá-la solta no espaço. É
preciso pelo menos colocar alguns parâmetros, dar alguma orientação e então
deixá-la construir o resto, exercitando-se na liberdade. Se o adulto não colocar
limite algum (nunca dizer não, por exemplo) pode provocar uma situação de
muita ansiedade para a criança. Nesse caso, o adulto não está assumindo seus
papéis, e a própria criança se vê obrigada a colocar-se os limites. Se para o
adulto já é complicado decidir o que é certo ou errado, bom ou mau, para si
próprio, imagine então ter que tomar tais decisões, por exemplo, aos dois anos
de idade. A criança teria que amadurecer antes do tempo.
Não é o caso de ficar o tempo todo martelando regras na cabeça, ou
vigiá-la  constantemente,  mas  também  não  é  para  deixá-la  sozinha,  sem
interessar-se pelo que lhe acontece. Não é preciso sentar-se todos os dias com
a criança para fazer lição de casa (neste caso, ela não teria nem oportunidade
de  aprender  a  ser  responsável;  os  erros  e  fracassos  também  são  muito
importantes). Mas  é  bom,  de  vez  em  quando,  perguntar-lhe  se  há  qualquer
problema; verificar se as lições de casa estão sendo  feitas, para que perceba
que  estudar  é  um  valor  importante  e  que  seus  pais  estão  interessados,  e
acompanham sua vida escolar. Não é preciso estar todos os dias à porta da4
escola, para perguntar à professora como vai indo o filho. Mas, certamente, é
preciso ter algum contato com a escola para estar informado das dificuldades,
fracassos e sucessos da criança.
Tomando  como  exemplo  uma  criança  que  começa  a  andar:  se  o
adulto  não  agüenta  vê-la  desequilibrar-se  e  cair,  e  a  ampara  o tempo todo,
nega-lhe  a  oportunidade   única  de  experimentar  seu  desequilíbrio  –
indispensável  para que construa seu equilíbrio –, de enfrentar o próprio medo
na  aventura  de  estar  de  pé  sozinha.  Mas  é  claro  que  o  adulto  não  pode
simplesmente  soltá-la:  é  ele  quem tem  que  cuidar  de  que  a  criança  não  se
exponha a situações realmente perigosas, com as quais não tem condições de
lidar. A atitude do adulto neste tipo de trabalho educacional é comparável ao
trabalho da parteira: trata-se de deixar a criança nascer,  respeitando o  ritmo
natural  do  parto. Mas  é  preciso também  estar  sempre muito  atento  para ter
condições  de  discernir  os  momentos  em  que  se  torna  necessário  uma
intervenção –  respeitando o  ritmo da criança, dando-lhe oportunidade de ser
co-autora  de  seu  nascimento. É  bom  ressaltar  que isto  nada tem  a  ver  com
desinteresse e ausência; ao contrário, é  preciso estar  sempre atento,  sempre
bem informado, preparado para intervir adequadamente, quando necessário.


Como  saber  exatamente  quando  e  em  que  medida  são  benéficas  essas
intervenções?
Entre os animais, isso é  simples: estão biologicamente preparados
para reconhecer o momento certo e o quanto de liberdade se precisa das aos
filhotes. Konrad Lorenz, por exemplo, fala de como, chegado o momento dos
filhotes  dos  pássaros  voarem,  as mães  destroem  o  ninho  caso  se  recusem  a
sair. E na queda, os passarinhos voam. Instintivamente, as mães reconhecem o
momento  da  prontidão  para  voar.  Caso  o  filho  não  tente  o  vôo  naquele
momento da vida, é muito provável que jamais consiga voar. Mas com gente é
diferente; com gente, encontra-se de tudo: criança de dois anos tendo que se
cuidar sozinha e mães com filhos de 40 anos ainda se perguntando se está na
hora  de  soltar  o  rapaz.  Isso  porque,  o  que  falta  ao  ser  humano  em instinto,
precisa ser compensado com recursos – recursos próprios do homem.5


Que recursos são esses?
Por  exemplo,  dialogar.  Diálogo  é  uma  conversa  em  que  d u a s
pessoas  conseguem  dizer  o  que  pensam  e  o  que  sentem.  Num  diálogo,  as
pessoas estão se expressando e também ouvindo o que o outro expressa. Quem
entra numa conversa só para falar ou só para ouvir não está dialogando.
Outro  recurso  é  observar. Embora muito importante,  a linguagem
verbal  não  é  a  única  forma  de  expressão  humana.  Observar  significa  estar
atento  para todas as  formas  de comunicação. Se alguém afirma  que é  feliz,
mas  sua  expressão  facial,  sua  postura,  seus  gestos,  seu  comportamento  o
negam, está acontecendo algo errado.
Importante  também  é  informar-se.  Devido  à  complexidade  da
sociedade  atual,  acho  difícil  conseguir  educar  bem  sem  um  mínimo  de
preparação.  Se  os  pais  sabem  que  a  birra  dos  dois  anos  de  idade  é  um
fenômeno  freqüente  do  desenvolvimento  e  conseguem  entender  seu
significado,  sentem-se  mais  tranqüilos  e  fica  mais  fácil  intervir.  Se,  pelo
contrário,  não  dão  o  peso  devido  às  birras,  deixam  que  o  problema  se
avolume,  ou  interpretam  simplesmente  como  “mau  gênio”  da  criança,  a
situação pode até vir a ser o início de um problema de relacionamento entre
eles e a criança.
Outro recurso é a informação, que permita aos pais de adolescentes
se situarem corretamente ante o conflito que vivem com os filhos. Não se trata
apenas de  rotular a  situação como “conflito de gerações”, mas  sim de obter
uma série de dados que lhes permitam pôr os pés no chão, para entender a si
próprios e aos filhos dentro da situação.
Atualmente, uma boa literatura fornece essa espécie de informação a
pais e educadores. As próprias escolas também já incluem quase normalmente
em  suas  programações  esse  tipo  de  serviço  com  conferências,  debates,
reuniões de pais e mestres etc.


O  ideal  seria  que  pais  e  filhos  resolvessem  a  questão  dos  limites
praticamente em pé de igualdade?
Não  exatamente.  Tem  que  existir  liderança.  Só  que,  nos  dias  de
hoje,  em  que  a  sociedade  moderna  pede  indivíduos  com  capacidade  de
escolha, de decisão, com sentido crítico, é preferível uma liderança6
democrática.  O  que  muda,  fundamentalmente,  nesse  tipo  de  liderança,  é  a
postura do educador. Ele não é mais o dono da verdade, autoridade inflexível
e  imutável  que  ninguém  ousa  contestar,  como  antigamente  se  pensava.  É
apenas um ser humano, e como tal, pode se enganar – atitude que nada tem a
ver  com  displicência,  irresponsabilidade  ou  incompetência.  Reconhecer  a
possibilidade de erro leva a pessoa a ser menos onipotente, mais cuidadosa,
aumentando a probabilidade de acerto.
O  líder  que  sabe  repartir  autoridade,  repartirá  necessariamente
responsabilidade. Como todos participaram da decisão estão em condições de
assumir,  cada  um,  sua  parcela  de  responsabilidade.Todos  poderão  aprender
com os sucessos e os erros, crescendo juntos. Esta é a postura típica do líder
democrático: aceita que ainda possa crescer, educa-se junto com o educando.
Voltando  à  pergunta,  a  colocação  de  que  pais  e  filhos  poderiam
resolver a questão dos limites em pé de igualdade, deixa a impressão de que a
liderança  desapareceria. Educação  democrática  não é ausência  de liderança.
Nega-se   autoritarismo prepotente de antigamente mas não autoridade em si.
Muda  apenas  a  postura  do líder. Ele  não  se  coloca  como  o  único  capaz  de
pensar e decidir. Reconhece os demais como seres pensantes e responsáveis.
Sua função, no entanto, é imprescindível.
Se  apenas  a  vontade  do  jovem  entra  no  conteúdo  das  decisões
familiares,  ocorre  uma  inversão  de  valores:  passa-se  da  prepotência  de
antigamente a uma situação de ausência, moleza e permissividade.
Em suma, estabelecer limites é fundamentalmente função dos pais.
Mas, na medida em que a criança for se desenvolvendo e criando ela própria
condições  de  assumir  responsabilidades,  o  importante  é  que  os  pais  lhe
confiem parcelas cada vez maiores dessas responsabilidades.
Texto publicado na revista
Psicologia Atual.
" Maria de Melo é psicóloga formada pela USP e psicoterapeuta pós-reichiana, com cerca
de trinta anos de experiência em clínica individual e grupo.


Ps: A configuração do corpo do texto não pode ser modificada devido ao tipo de arquivo, por este motivo, a disposição do texto está diferente do comum. 

Muita Paz!

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